Entre as Linhas: O Impulso Alegórico no Trabalho da Susana Mendes Silva

Em 2001 Susana Mendes Silva desenvolveu um trabalho para ser integrado numa série de 'publicações' de um jornal diário. Reconhecido pelo seu empenho na cobertura dos assuntos culturais, este jornal reservou durante o ano inteiro, cada semana, no seu suplemento a página dupla central (Centerfold) para intervenções artísticas. Um dos críticos de arte do jornal, Óscar Faria, assumiu o papel de curador e convidou artistas a 'utilizar' livremente, sem qualquer restrição o espaço generosamente reservado. Um tipo de iniciativa que faz lembrar as actividades da Sociedade de Arte Museum in Progress (Museu em Progresso) na Áustria, quando nos anos noventa lançou no Jornal 'Der Standard' um conjunto das publicações deste tipo de 'Arte Pública', ou também, ainda mais cedo e hoje reconhecido como o primeiro 'protótipo": a peça de arte que se materializou em forma de uma publicação intitulada 'Homes for America', de Dan Graham, na revista americana Arts Magazine, em Dezembro 1966.

O facto de um Museu ou espaço de exposição 'normal' ter as suas próprias regras de funcionamento, condiciona, por um lado, a leitura de arte e torna-se, por outro lado, numa condicionante necessária para uma arte que só no 'cubo branco' consegue pôr em acção o seu jeu de interactividade intelectual entre o autor e o espectador, por via da sua peça de arte. Há um desdobramento específico da arte no museu, como com um filme no cinema. O museu oferece-se para qualquer intervenção artística como uma bolha, garantindo aos autores uma certa 'impunidade' dos seus actos de 'provocação', muitas vezes contra as hipocrisias da sociedade, que, no fim das contas, financiam esta mesma bolha. Os paradigmas da produção de arte, com os seu discursos, as arquitecturas dos museus e os conceitos de utilização das mesmas influenciam-se mutuamente. Seja ao fazer-se uma arte que se define fisicamente pelas infra-estruturas museológicas existentes; seja quando os museus, sempre na procura do original e do novo no actual Zeitgeist dominado por uma indústria cultural, 'engolem' as novas formas de apresentação de arte pela adaptação das suas infra-estruturas, como mostra bem a transformação do 'cubo branco' numa 'caixa negra' albergando o equipamento de projecção de vídeo (e às vezes ainda slides), actualmente tão reclamado por grande parte dos produtores de arte contemporânea.

Muitos autores de projectos que tiveram de refinar as gramáticas artísticas durante as suas carreiras a partir destas regras do jogo, esqueceram-se que na pura transposição de trabalhos já conhecidos das galerias ou museus para uma página dupla de um jornal, acabaram por eliminar a eficiência do referido jogo, especialmente quando os trabalhos - a partir da teoria predominante de arte moderna - recusam aspectos alegóricos.

Susana Mendes Silva no seu contributo para o Jornal Público, publicado no dia de 19 de Maio de 2001, evoca estes mesmos aspectos. A sua contribuição liberta pensamentos à volta das infra-estruturas de segunda ordem, das quais precisamos nos Museus e Galerias para criar significado no campo da arte: a cor do chão do espaço da exposição, o plinto e o passe-partout, a vitrine que sugere peças valiosas, a mesa da recepção na galeria de arte com publicações e textos do curador ou críticas publicadas (como esta que o leitor está a ler) e finalmente a ficha na parede, ao lado da obra de arte. Esta última é bastante conhecida por ser a nossa salvação quando um certo sentido de perda de confiança em frente da peça de arte se apodera de nós, quando não encontramos pontos de acesso à peça que permitam descodificar o discurso do autor. Nesses momentos recorremos rapidamente à ficha, na qual esperamos encontrar a solução, o efeito 'Ahah!' por via da compreensão de quem é o autor, o título da obra ou outras informações que finalmente nos podem revelar a essência intelectual da peça. Esta importante componente da segunda ordem é vertida pela Susana Mendes Silva para a primeira ordem. A ficha torna-se a peça de arte, a qual reflecte e apropria o contexto da apresentação: a ficha da peça de arte como a peça de arte ela mesmo aparece em forma de um texto reproduzido em massa na dupla página central de um jornal.

A 'informação' na legenda - o texto que se torna a peça - leva o jeu da artista ainda mais fundo. Além de mencionar o nome do autor, a autora põe no título 'Público (Centerfold)', as duas palavras que referenciam o Jornal e o sítio ocupado no jornal (a dupla página central, cuja designação técnica é precisamente Centerfold), onde nós, 'leitores', encontramos acidentalmente a peça de arte. E continua a mencionar a técnica (a partir do processo de impressão), o formato (do jornal) e a tiragem da peça reproduzida em massa (tiragem do jornal nesse dia).

O que dá o nome à peça é a peça, e isto resulta numa duplicação do próprio meio/media que alberga a peça. O leitor do jornal encontra-se assim na situação, criada pela artista, de acabar por ler a ficha técnica de uma peça de arte que reclama ser a peça de arte propriamente dita na sua tiragem de 76.000 exemplares de um jornal, podendo-se então falar de uma dicotomia 'ficha técnica - peça de arte' que reflecte a dicotomia 'peça de arte - jornal'.

Podemos constatar um certo simbolismo neste desvio pela sua referência à própria arte moderna, aos mitos da arte moderna, com o seu empenho na genialidade e originalidade do autor, com a tiragem aqui indicada pela artista (com a sua própria plausibilidade) a tornar-se ridiculamente elevada. Como parte essencial da obra, esta indicação torna-se 'texto' no duplo sentido referido por Roland Barthes, funciona como visualização da sua visualização 'excessiva', subvertendo uma das ferramentas mais importantes da criação de significado no campo da arte moderna, que ainda (ou, mais uma vez, cada vez mais) mantém-se em vigor. Susana Mendes Silva percebeu muito bem como utilizar as inevitáveis limitações de apresentação de arte num centerfold do suplemento de um jornal, tornando-as numa mais valia, contexto apropriado para a artista oferecer ao leitor (público) uma sofisticada porta de entrada no jogo da comunicação da autora com 'O Público'.


Jürgen Bock