Uma artista no chat room

Em 2002, Susana Mendes Silva (1972) realizou, para a Free Manifesta, o projecto Artphone, uma performance mediada por telemóvel, na qual qualquer pessoa podia contactar a artista, que tornou público o seu número pessoal de telemóvel, e discutir temas relacionados com arte contemporânea. O slogan de divulgação da performance era bastante revelador do intuito do projecto: "Don't be afraid to ask everything you always wanted to know about contemporary art". Tudo o que sempre alguém quis saber sobre arte contemporânea estava ao alcance, apenas à distância de uma chamada telefónica. A artista expunha-se, colocava-se à disposição de quem lhe ligasse e assumia que podia responder a qualquer pergunta que lhe fosse colocada.

Em 2005, três anos depois, o telemóvel foi substituído. A uma atitude de disponibilidade, de espera, que caracteriza quem aguarda uma chamada telefónica, a artista contrapõe uma dimensão mais agencial, mais activa. Substitui o telemóvel por uma video chat room existente online. Surge assim Art_room, uma performance online em que qualquer pessoa se pode encontrar com a artista e, mais uma vez, perguntar tudo o que sempre quis saber sobre arte contemporânea. Para além da óbvia mudança de ambiente e, consequentemente, do tipo de relações que se estabelecem, a artista operava também ao nível de envolvimento de quem assiste ou participa na performance. Já não basta fazer uma chamada telefónica. É necessário possuir uma ligação à Internet, conhecer as regras implícitas de funcionamento dos chats e instalar um conjunto de software especifico que permite o acesso e a interacção com os outros utilizadores do chat.

A artista divulgou por e-mail a sua performance, que ocorreu em horários pré-definidos durante o mês de Junho. O intuito era juntar, num mesmo local, os frequentadores típicos destas salas de conversação online e as pessoas mais familiarizadas com um discurso artístico contemporâneo. O decorrer da performance seria deixado ao acaso, e exclusivamente dependente das interacções do público com a artista. Apenas compareceu uma pessoa para além dos frequentadores habituais da sala escolhida. A performance teve início e a artista apresentou-se pedindo que lhe dirigissem perguntas relacionadas com arte. A incompreensão do motivo de tal acção colocou quem se encontrava na sala numa postura de desconfiança generalizada, que se acentuou drasticamente após a informação repetida de que o que a artista estava a realizar era uma performance, que requeria a participação de todos e que podia ser considerada uma obra de arte. A artista foi convidada a sair daquela sala, sendo claramente explicitado que a sua presença não era desejada.

No dia seguinte, a performance repetiu-se na mesma sala de conversação. As pessoas que se encontravam presentes eram, exclusivamente, utilizadores do chat e, na sua grande maioria, as pessoas do dia anterior. Perante o prosseguimento da actividade, aparentemente incompreensível e indesejável, o responsável pela monitorização das salas desligou-lhe a webcam e, algum tempo depois, foi banida de todas as salas monitorizadas que constituíam a área friends and family.

O projecto Art_room excedeu assim as expectativas iniciais da artista. Ainda que dependendo do estabelecimento de relações sociais e, consequentemente, de todas as contingências que as definem, nunca foi esperado que as reacções atingissem tais proporções. No entanto, um olhar mais atento sobre os processos que a artista explorou e, sobretudo, minou, deixa que se entreveja a previsibilidade das reacções que ocorreram nos dois dias em que a performance teve lugar.

A artista, com a concretização deste trabalho, operou em duas áreas distintas, ambas passíveis de despoletar comportamentos como os assistidos. A noção de comunidade é central em Art_room. Existe um conjunto de indivíduos que partilham os mesmos interesses e que se encontram reunidos num determinado espaço online que consideram o seu espaço de reunião. É a partilha desse espaço que os define como comunidade. Ao introduzir-se na sala de conversações, a artista atravessou a fronteira da comunidade, que separa o exterior, o mundo, do interior, um grupo restrito de indivíduos. Não só atravessou, penetrando no seio da comunidade e assumindo-se como outsider, estranha, como também agiu de forma a salientar essa diferença, vincado a sua alteridade e a impossibilidade de conversão, de inserção na comunidade, de partilha de um discurso comum. A artista não pretende ser um membro da comunidade. Ela age portanto de forma disruptiva, perturbando o normal funcionamento da estrutura social que se constitui naquela sala de conversação.

Mas, para além de se assumir como um outro, irredutível ao grupo, ela vem questionar as próprias crenças relativamente ao conceito de arte. Assumindo o comportamento visível por todos como um projecto artístico, ela não só choca directamente com uma visão tradicionalista, objectual, do conceito de arte detido pelos membros da comunidade, como afirma que uma actividade parasita, perturbadora, indesejável, pode ser considerada arte. Confronta-os com algo que eles não encaram como tal e que não virão a considerar como tal. O debate não se centrou sobre o que era inicialmente o intuito da artista, responder a perguntas sobre arte contemporânea, mas a justificação e a legitimação do seu comportamento, desadequado aos olhos da comunidade, como uma prática artística. Tal como a artista nunca se converterá num elemento da comunidade, também os elementos da comunidade não partilharão da mesma visão do fenómeno artístico com a artista.

Temos aqui então dois acontecimentos, que podem ser sintetizados na dicotomia sempre presente do eu e o outro e que, neste caso, vai resultar inexoravelmente num diferendo sem resolução possível, que só poderá ser concluído de uma forma. A comunidade volta a restabelecer o seu equilíbrio, eliminando o elemento destabilizador, o grão na roda da engrenagem, a artista e o seu comportamento.

Uma performance mediada tecnologicamente que funciona como um laboratório sobre as relações humanas. Um exercício interessantíssimo que ocorreu diante dos nossos olhos, em tempo real. Onde está a diferença entre online e offline? O mundo online como espaço público aberto ao diálogo e à participação igualitária entre todos? Onde está a utopia libertadora, emancipatória, do ciberespaço? A artista saberá responder.


Luis Silva