Delicatesse

Isto é um texto de género. Forçosamente. De género, no sentido em que se fala de pintura de género. Não tanto para que se saiba do que se está a falar, mas para que, de entrada, fique claro que o fazemos segundo certas convenções, uma estrutura, uma malha.para que se saiba do que se está a falar, mas para que, de entrada, fique claro que o fazemos segundo certas convenções, uma estrutura, uma malha.
Cada género tem as suas regras. A arte de Susana Mendes Silva está em saber respeitar essas regras para depois as perverter melhor. Com o mais absoluto rigor e com requintes de delicadeza.
Assim, ler este texto sem lançar um primeiro olhar sobre as imagens que compõem o livro revelar-se-ia desinteressante. Não é o texto que funda - no sentido de estabelecer - as imagens. É o contrário. pretende-se consubstanciar o sentido que elas possam ter, e não dar-lhes sentido. Retirar e nunca acrescentar. "Tirar-lhes peso".
Pesa-se, neste texto, cada palavra com a avareza de uma natureza-morta despojada e pobre.

Still-Life

Glosar em torno da expressão inglesa não vem a despropósito. Parece ser disso que se trata com estas imagens: fragmentos da vida paralisada. Desde logo, como sortilégios de Medusa, as fotografias paralisam. Isso é particularmente tangível nestas imagens. São, na sua maioria, instantâneos imobilizados e lentos que retratam composições já de si imóveis e silenciosas. Parecem encenar uma evidente domesticidade, suspensa de sentido, alheada de constrangimentos geográficos e determinismos políticos. É, à primeira vista, apesar de não se constituírem propriamente como obra mas mais como registo, do ponto de vista da interioridade que se relacionam com o trabalho da artista.

Da tensão como forma de subtileza

Susana Mendes Silva tem vindo de forma sempre subtil a referir-se ao universo quotidiano, ao espaço imperceptível que medeia os nossos gestos quotidianos e a percepção que deles temos, ao tempo que se escoa sem lhe darmos relevância, sem lhe concedermos substância.
O seu trabalho gera, instaura e vive de um potencial de transgressão que aparece quase invariavelmente travestido num contexto de intimidade. É, parafraseando a artista, um trabalho sobre o limite. Um trabalho de rigor e sensibilidade na plena acepção do termo. Sensibilidade à cor, sensibilidade às texturas, ao peso, ao som, à dor. Sensibilidade feminina. Assim, em tons ásperos e aveludados se declina o seu vocabulário. Tomemos algumas das suas obras anteriores como exemplo.
Um sabonete com uma lâmina dentro (S/ título,1998) é uma cortante contradição nos termos.
Umas fotos de pés desnudados com soldadinhos de guerra pintados de rosa e colocados entre os dedos (Rose Ladies,1998) são improváveis auto-retratos de luxo, calma, volúpia e escárnio.
A queda de um lance de escadas, ludicamente encenada por um conjunto de vestidos de boneca cosidos e preenchidos com areia (Why don't you go if you just can't move, 1998), é uma promessa de violência doméstica.
Um anel masturbatório em pelúcia vermelha, um tampão em folha de ouro para usar num dia especial ou um massajador de luxo em forma de vibrador dourado- Jóias Íntimas (1996), como lhes chama a artista- são pequenos instrumentos de ambiguidade e prazer, calembures em torno de materiais e significados.
Uma série de imagens do interior de uma casa de Sarajevo (Delicatesse,1999), uma fria constatação da normalidade. O retomar de uma memória antiga gravada no corpo e verificada nos hábitos.

Do livro propriamente dito

1. Só em livro estas imagens poderiam ter sido mostradas. Se, apresentá-las neste formato específico é, por um lado, retirar-lhes em leitura aquilo que se lhes acrescenta em intimismo, por outro, aumenta-lhes o mistério, o mistério da sua banalidade. Este é um livro de viagem, de pequeno formato, para levar no bolso.
2. Na capa, desde logo, o mote está dado. Uma imposição quase. Um modus faciendi. Manipular com cuidado, olhar com delicadeza. Esta fotografia de um néon cor-de-rosa, encontrada ao acaso numa deriva citadina pelas ruas e montras de Sarajevo, e convocada para inaugurar a série de imagens que encontramos neste livro, sugere algo mais. Emerge-nos no universo da artista, pondo o acento, através de um processo de metalinguagem, numa unidade de pensamento que não deixa lugar ao acaso, ao improviso. Demonstra, ainda, o carácter ambivalente de que se reveste, já o vimos, o seu trabalho.
3. Esta série é, antes de mais, todas as imagens que dela foram excluídas. Define-se por uma lógica de necessidade. Só o que é necessário entra em linha de conta. Nesse sentido, vive de todas aquelas outras imagens, são elas o garante da sua integridade e do seu sentido casto de economia. Partindo desse pressuposto podemos descortinar um princípio de intencionalidade, menos de um ponto de vista icónico que semântico.
4. Há um trabalho de costura no tecer desta série. As imagens rimam entre si como se uma qualquer necessidade da ordem do invisível as acomodasse umas às outras. São uma estrutura, marcam um ritmo interno. No entanto, apesar de parecerem encenar uma narrativa com princípio e fim, elas não descrevem. Tornam presente. Criam uma ilusão de simbolismo, mas não trazem em si o peso dos anos de destruição. É de construção que se trata. De reconstrução, talvez.
5. Descrevê-las equivaleria a obliterar o seu potencial intrínseco, assim como o seu alcance narrativo. Vislumbrar, sem engenho, que nelas se inscreve uma multiplicação de gestos banais, recorrentes, elementares à sobrevivência de cada um, não acrescentaria nada àquilo que elas são. Todas as imagens condensam a noção de ver, todas trazem em si a essência da visão. Neste caso, uma jarra é mesmo a ausência de todas as flores.


Nuno Faria