O que é que lhe passou pela cabeça?
Quem já leu listas de sintomas que permitem identificar distúrbios psíquicos e neurológicos já deve ter percebido que, na maioria dos casos, faz ou fez, ou sente ou sentiu, quase tudo aquilo. Isto porque estas listas carecem de uma tabela de graus, e porque o problema, dizem os especialistas, não são os sintomas em si, vistos isoladamente, mas uma sua particular concorrência. O facto é que os lemos com uma perturbadora sensação de familiaridade.
Nos últimos meses, Susana Mendes Silva dedicou-se a consultar
sites na Internet que disponibilizam informação sobre o diagnóstico e o tratamento dos mais variados distúrbios psicológicos, todos relacionados com agudos problemas de identidade e de auto-estima. Seleccionou uma série de frases - algumas apontam sinais para o reconhecimento de determinadas patologias, outras são testemunhos de diagnosticados - que inscreveu depois, paciente e metodicamente (escrevendo como quem faz ponto-de-cruz), em
folhas de papel milimétrico. O resultado: folhas e folhas do papel que mais associamos ao rigor, à ordenação e à disciplina repletas de frases que evocam os seus exactos avessos, como o transe, a insegurança, a perca de controlo. Disse avessos e não contrários porque o processo que a artista empregou para escrever - minucioso, enfadonho (e é impossível, mal olhamos para estes desenhos, não pensar nas muitas horas empregues numa actividade absolutamente repetitiva) - aponta para uma questão que é, sempre foi, extremamente relevante para se definirem e pensarem os distúrbios psicológicos: a forma como se gerem atenção e dispersão, concentração e distracção, categorias que estão muito longe de poder ser consideradas enquanto simples oposições.
A atenção sempre foi defendida como uma forma de designar a capacidade de isolar e de seleccionar certos dados perceptivos, de forma a manter ordem e produtividade. Porque seria uma defesa disciplinada contra formas disruptivas de associação livre; porque sem a capacidade de estarmos atentos a consciência tornar-se-ia refém das impressões externas, impossibilitando o verdadeiro pensamento e tornando-nos psicologicamente débeis, histéricos, ou, em rigor, esquizofrénicos - afinal de contas, a esquizofrenia é a absoluta incapacidade para seleccionar, para nos defendermos de todos os impulsos externos. Mas a verdade é que - todos o sabemos por experiência própria - à máxima atenção pode corresponder máxima distracção. É muitas vezes quando estamos mais concentrados, a ouvir, a tentar aprender, a fazer contagens, que surgem os pensamentos mais intensos e mais desviantes. É justamente nos interstícios de circuitos de enfado, ou de experiências repetitivas, que melhor podem florescer quebras de pensamento, dissociações, transes, o sonhar acordado. Quando Susana Mendes Silva desenha como quem borda, numa actividade em que concorrem atenção fixa e puro automatismo, está a apontar para a possibilidade de desvario dentro da ordenação mais rigorosa. Note-se ainda que a artista não se limita a escrever uma vez cada frase, mas muitas vezes repete-as. Ora a repetição - os escritores, os poetas principalmente, sempre a utilizaram - pode servir muita coisa: para enfatizar, sublinhar tédio, exprimir confusão (a voz repetitiva é uma voz alucinatória), conjurar, rezar, embalar, mostrar que se deseja mesmo, que se deseja muito, memorizar, transmitir conforto, apagar o sentido (tornar a linguagem opaca)... a lista seria interminável. A repetição, neste caso, serve para tudo isto ao mesmo tempo. Até porque a forma como a artista dispõe as frases nas páginas, e a forma como as páginas se interrelacionam, faz com que as associemos imediatamente à oralidade (são palavras que ecoam imediatamente na nossa cabeça) em todas as suas gradações: adivinhamos diferentes entoações e velocidades, que vão do murmurar ao confessar baixinho, da reza ao desabafo, da lengalenga ao grito afiado. Além disso, Susana Mendes Silva faz coincidir as conotações do papel milimétrico ao poder da palavra para engendrar espaços - poder que tem vindo a ser explorado pelo menos desde Mallarmé, mas com especial agudez pela poesia visual. É um papel que, como vimos, associamos ao rigor e à repetição, mas também à espacialização: vemo-lo frequentemente associado à arquitectura, à geografia, à cartografia. Ora o que a artista nos apresenta, e que reflecte a sua preocupação com o nó entre escrita e espaço, são autênticas cartografias de pensamentos, repetidos, cortados, desviados. São espaços onde se vão fazendo constantes redistribuições: uma espécie de mapas, ou de constelações de afecções. O espectador/leitor vai conectando frases e estabelecendo relações que mais à frente se desintegram - a verdade é que controla o texto tão pouco como a pessoa que o escreveu. Digamos que é uma maneira de escrever, e de ler, que participa da alucinação que as próprias frases sugerem.
Susana Mendes Silva escolheu mostrar estes desenhos na divisão da Casa D'Os Dias da Água que mais associamos a um espaço de intimidade, de aconchego, de conforto - uma sala relativamente pequena, forrada a tecido. Afirmava a artista há algum tempo, acerca do papel da domesticidade no seu trabalho: "O terreno da intimidade é um terreno rico, começando pelo facto de supormos sempre que este é um lugar seguro, interior e aquém da realidade. Por outro lado, é também o lugar privilegiado dos afectos, dos desejos e das violências inconfessáveis". Sempre pensei que o seu trabalho era particularmente perverso, porque tão violento quanto delicado; melhor, que a sua fragilidade operava como uma espécie de câmara de ressonância para a violência, denunciando-a no que ela tem de mais cruel, que é frequentemente o seu carácter reiterado mas abafado, velado. A prova é a divisão onde vemos estes desenhos, a Sala Pompadour - nestes dias cenário de todas as variantes de problemas de comunicação e de identidade, muitas vezes relatados de forma brutal e delirante -, continuar a parecer um lugar acolhedor e aconchegante, relacionável com lavores, docemente burguês.
Ricardo Nicolau
Novembro 2005