Delicadeza


Conheci Susana Mendes Silva no Outono de 1998 em Sarajevo num workshop integrado na preparação de uma Bienal de Jovens Artistas cujos trabalhos se apresentam em Roma na Primavera de 1999. Uma situação excepcional em que todos os participantes sofriam o impacto da cidade de Sarajevo, uma cidade com uma imensa carga simbólica e uma fortíssima presença física, ao mesmo tempo que geriam uma interacção intensiva no âmbito de um grupo de cerca de vinte jovens artistas das mais variadas origens, dos Balcãs a Israel, dos países nórdicos à ilha de Chipre. O potencial de confronto de experiências e sensibilidades, troca de informações e opiniões, é imenso mas para o artista a quem se pede para reagir e apresentar um projecto de trabalho num curto espaço de tempo não é fácil encontrar a concentração, a intimidade e o auto-centramento necessários à eleboração de um ponto de vista pessoal.

O trabalho realizado por Susana Mendes Silva afigura-se-nos exemplar no modo como lida com as evidências e emoções complexas e contraditórias impostas pela cidade.

Toda a gente viu as imagens do cerco e bombardeamento de Sarajevo. Mas apesar de tudo eram imagens e era um sentimento, um sentimento de indignação. Hoje a experiência concreta da cidade confirma tudo com um perturbante acréscimo físico de realidade. Era ali mesmo que estavam os tanques. Foi ali mesmo que os corpos caíram. Estes foram os buracos feitos pelas balas. Estas foram as crateras abertas nas ruas. Estes foram os edifícios destruídos. Isto aconteceu. Foi real. É real. O que aconteceu não pode deixar de ter acontecido. Está ali. Mas o inadmissível tem que dar lugar ao plausível. A realidade impossível tem que dar lugar à possibilidade da realidade. Edin Numankadic, artista plástico que viveu em Sarajevo durante todo o período do cerco, insiste: "É preciso tempo. É preciso tempo." É isso: a vida precisa de tempo, a vida é tempo.

O trabalho que Susana Mendes Silva realizou para a exposição de Roma aborda directamente a realidade concreta da destruição física da cidade. Imagens de edifícios crivados de balas são impressas em tecido depois aplicado num bastidor, onde irão ser cerzidos os orifícios que a autora fez corresponder às imagens dos impactos das balas. Trata-se, literalmente, de suturar, re-ligar, curar, restaurar a superfície de um corpo físico brutalmente violentado, o corpo da cidade.

Conversei com pessoas de Sarajevo que falam da cidade como se falassem do seu próprio corpo. Dir-se-ia que a conhecem como cada um de nós conhece o seu próprio corpo: fraquezas, belezas, ruínas, esplendores, detalhes, relevos, cicatrizes, brilhos. Contam uma história clínica como uma história dos acontecimentos que foram diagnosticados, identificados, deixaram marcas que podem ser mostradas, comentadas. Evocam, também, aquilo que ainda não foi identificado, os sintomas que ainda não encontraram o seu quadro sistémico. Aproximam-se de coisas terríveis ou maravilhosas que já estão quase à beira de poder ser ditas: faltam apenas mais algumas palavras, que estão ainda apenas quase disponíveis, um pouco mais de tempo. Não falam daquilo que não podem falar, como nós não falamos de certas coisas dos nossos corpos, porque não podemos falar. Não sabemos o que havemos de dizer. Às vezes sente-se muito a presença das coisas a respeito das quais não sabemos o que havemos de dizer.

É aqui que o trabalho de Susana Mendes Silva apresentado neste livro, a série de fotografias "Delicatesse" ganha todo o seu sentido. Aparentemente ele é o reverso da abordagem da evidência espectacular da cidade mártir feita no trabalho acima descrito. Mas este é um reverso complementar, quase diríamos indispensável. É um trabalho de silêncio, de espera, de suspensão das proclamações. Um trabalho que consiste sobretudo em procurar tempo, encontrar tempo, dar tempo. Para que se reconstrua uma intimidade. Para que se construa uma habitabilidade. Um trabalho silencioso e solitário. É aqui que a palavra "delicadeza" adquire toda a sua razão de ser.

A reflexão sobre a intimidade e o espaço doméstico, característica do trabalho da autora, corresponde aqui à circunstância e dificuldades específicas da sua experiência em Sarajevo e talvez ao que se poderá considerar um imperativo vital sugerido pela própria cidade: mais tempo, tempo de pausa depois do massacre.

Delicadeza.


Alexandre Melo